BIBLIÔ ENTREVISTA - Nohemí Brown e Lucíola Macedo

O Bibliô entrevista a equipe responsável pelo CIEN no Brasil, focando  no evento que acontecerá em novembro no seio das atividade do XX Encontro Brasileiro do  Campo Freudiano em Belo Horizonte.


Por Mônica Hage – Coordenadora do Cien Bahia


1. Nohemí Brown, Como coordenadora Geral da atual equipe de coordenação nacional do CIEN/Brasil, o que você poderia nos dizer sobre a formação do analista e o trabalho dos laboratórios do CIEN?


Considero que esta é uma questão que, como analistas e participantes de uma prática inter-disciplinar como a do CIEN, precisamos formular e reformular em determinados momentos. Como sabemos, a formação do analista, para além de sua análise pessoal, não é simplesmente uma aquisição ou transmissão de saberes, é mais bem uma formação muito sutil que implica, como diz Miller, a aparição de certas condições subjetivas1.
Portanto, podemos pensar duas dimensões da formação do analista no trabalho dos laboratórios: 1) por um lado, produzindo um efeito de formação como analista; e, 2) por outro, a formação do analista como uma condição para fazer funcionar a Conversação em uma prática inter-disciplinar.


Se pensarmos em termos de "efeitos de formação", podemos considerar que entre a causa e o efeito, na formação do analista, há uma brecha, uma hiância. Miller indica que justamente nesta brecha, a contingência joga um papel fundamental: "Destacar o efeito-de-formação é admitir implicitamente que não há automatismo na formação analítica, não encontraremos um mecanismo; não o procuramos, damos lugar à contingência"2. Neste sentido, não se trata de dar lugar só às "causas", senão também aos "lugares". A contingência implica a multiplicidade de causas e lugares de formação. Desde esta perspectiva, o trabalho nos laboratórios pode produzir efeitos de formação, já que esse enfrentamento do real produz efeitos de sujeito. Inclusive a presença e depoimentos de AEs em exercício, nos eventos do CIEN, tem sido muito esclarecedora a esse respeito.


Porém, também temos a segunda dimensão. Podemos pensar a formação do analista como fundamental para que a Conversação dos laboratórios funcione de forma viva, como um espaço de leitura e de abertura para novas posições para as equipes. Tomemos o termo Real, que é parte do tema da 4ª tarde de trabalhos do CIEN deste ano: Trauma e Real: o que as crianças inventam? Justamente o que pode promover uma Conversação nos moldes do CIEN, é considerar o real em jogo. Podemos dizer que o real, nas instituições ou para as equipes, se apresenta sob a forma de um Mal-estar ou um impasse. Frente ao real em jogo no mal-estar pode-se preferir dormir, não saber dele, ou colocá-lo de fora, como se verifica muitas vezes na palavra dos profissionais, esperando que a criança ou adolescente mude de turma, saia da escola, seja medicado ou classificado em alguma das etiquetas do DSM. Isto é, a tendência nos discursos vigentes para tratar o real, é a segregação. O desafio ao propor uma prática CIEN, é colocar esse mal-estar no centro da Conversação, dando a palavra aos profissionais e às próprias crianças e adolescentes. Não é fácil partir do ponto de angústia que incomoda às equipes. Mas, como as crianças e adolescentes ou as equipes vão inventar, se não colocam a trabalho esse mal-estar? De alguma maneira, a própria experiência de análise, como parte integrante da formação do analista, abre a possibilidade deste esforço. Ana Lydia Santiago o diz de uma maneira muito clara: "Trabalhar em função desse ponto angustiante que se reproduz é um desafio, comparável ao do analisante no trabalho da análise pessoal"3. Se considerarmos isto, a formação do analista no trabalho dos laboratórios, nas conversações, é o que permitirá considerar o real em jogo apesar da tendência de não querer saber dele. O analista nas equipes inter-disciplinares, sua palavra e posição, mais do que um doutrinamento da psicanálise, visa operar a partir de sua formação e orientado pelo real. Cabe dizer que muitas vezes há pessoas que decidem fazer uma análise a partir desse trabalho nos laboratórios.

Portanto, esses dois pontos da formação do analista implicam um estreito e complicado laço entre a psicanálise em intenção (análise pessoal) e a psicanálise em extensão (como é o trabalho do CIEN). Lacan, no texto Proposição.... coloca que: "...é no próprio horizonte da psicanálise em extensão que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intenção."4


Para fazer um laço, são necessárias essas duas dimensões. Sem a psicanálise em intenção não há possibilidade de um laço com a psicanálise em extensão.


2. Nohemí, este ano o CIEN trabalhou nos seus laboratórios o mesmo tema da NRCereda, "Trauma e real: o que as crianças inventam?" Quais os efeitos dessa articulação?

Poderia dizer que um dos efeitos mais importantes foi assumir o desafio e, ao mesmo tempo, a oportunidade de esclarecer a lógica que rege o CIEN e a NR-Cereda. Poder abordar uma mesma temática a partir de duas práticas diferentes: uma inter-disciplinar e outra clínica. Há uma pequena sutileza no título da NR-Cereda que aponta a essa diferença fundamental com o CIEN. Diferença que não é excludente, ao contrário, que mostra a riqueza de cada proposta e a possibilidade de um trabalho articulado com crianças e adolescentes e com as equipes, nas instituições. Para a NR-Cereda o tema é "Trauma e Real na clínica, o que as crianças inventam?" Essa dimensão clínica não está presente no CIEN, pelo menos não da mesma maneira, nas conversações das equipes inter-disciplinares.

Poderia dizer que, especialmente para o CIEN, um dos efeitos mais palpáveis foi colocar a trabalho as pessoas vinculadas à psicanálise para traduzir e transmitir de forma clara e rigorosa os termos Real eTrauma. Tão importantes para a psicanálise, mas que para pessoas de outras disciplinas podem resultar obscuros e complicados. Desta maneira, em alguns laboratórios, a ênfase foi partir da segunda parte do título, "o que as crianças inventam?" Introduziram assim a dimensão subjetiva e singular das crianças e adolescentes para reconhecer que as invenções são respostas a algo. Inventa-se em função de algo, de uma situação onde não se encontra saída, de um impasse. Qual é a importância da invenção para as crianças? Como ela permite, no caso a caso, às crianças e adolescentes se introduzir no laço social? Qual é a participação das equipes nestas invenções? Ali onde havia repetição, de que ordem é a invenção que permite que algo se escreva? Perguntas que orientam o trabalho do CIEN, e de alguma maneira a NR-Cereda, mas que propõem respostas desde lógicas diferentes; uma articulada às Conversações (das equipes interdisciplinares ou com as crianças e adolescentes) e, outra na clínica.


Cabe dizer que com a proposta de um mesmo tema, surgiu inicialmente o desejo de realizar um evento conjunto que permitisse extrair e acompanhar nas mesas, as propostas do trabalho do CIEN e da NR-Cereda. O evento em novembro não será conjunto, mas de alguma maneira estará articulado, pois muitas das pessoas que participam de um estão presentes no outro. Essa circulação entre os participantes possibilitou em SP e BH que se realizassem Conversações entre o CIEN e NR-Cereda tomando como base casos de laboratórios. Experiências muito ricas!


O evento CIEN com a presença de Miquel Bassols e o da NR-Cereda com a de Maurício Tarrab nos aguardam para trabalharmos e recolhermos os efeitos desta temática e deste desafio.


3. Lucíola Macedo, enquanto membro da atual equipe de coordenação nacional do CIEN/Brasil, como você pensa que os laboratórios do CIEN podem contribuir para a ação lacaniana nas cidades?

Acredito que esta instigante questão toque num tema crucial para o CIEN, que é o da interdisciplinaridade. A aposta do CIEN na interdisciplinaridade vai mais além de um simples intercâmbio entre diferentes disciplinas, áreas de atuação e/ou discursos. Ela tem uma função tão fundamental quanto suplementar, que é aquela de descompletar o saber do analista,  como também sua ação, a ação lacaniana nas cidades, aquela que se pratica do lado de fora âmbito estritamente clínico, tanto aquele do consultório privado, quanto no âmbito das práticas da psicanálise em instituições. 
Em 195615, Lacan afirmara que o psicanalista precisa trabalhar contra seus próprios "hábitos mentais" e contra a crença quase religiosa de que nenhum acontecimento de saber seria capaz de abalar seus fundamentos. Sua acomodação ao saber estabelecido, mesmo aquele que se constitui no âmbito da própria doutrina analítica, poderá resultar em nada menos que na neutralização da própria psicanálise. Poderá se apresentar, tal como já advertira Jacques-Alain Miller, como um obstáculo à regeneração periódica da própria psicanálise6.


O saber extraído e constituído no âmbito dos Laboratórios do CIEN, por sua vez, nos leva a renovar a aposta de que os outros discursos também subvertem a psicanálise! Exigem que ela se reinvente; que não se trivialize ou se automatize; e que o legado de Lacan siga mantendo aberta a brecha no saber, que por seu próprio movimento e estrutura tende a se totalizar, a se nivelar, a tornar-se irrelevante quando subsumido a qualquer discurso que se queira totalizador. Essa subversão, ao invés de anunciar o fim da psicanálise, de sua eficácia ou de sua relevância, poderá nos desafiar a não adormecermos em nossos "hábitos mentais", a não nos acomodarmos no já instituído.

Nesse contexto, mais que comparecer como intérprete ou em posição de mestria, caberá ao praticante da psicanálise, apresentar-se com seu não-saber, como um agente daquilo que destotaliza os saberes, apontando sua inconsistência. Ao não nos apoiarmos no discurso da eficácia e da maestria, somos convocados a nos havermos com aquilo que fracassa, se repete, se rebela, e que insiste, furando os protocolos, objetando o bom senso, excedendo às prescrições. É a partir da incompletude, e não da conciliação ou da regulação, e menos ainda da mestria, que o praticante da psicanálise poderá sustentar a ação lacaniana no âmbito das mais variadas formas através das  quais a conversação e a prática interdisciplinar do CIEN poderão se dar.

_________________


1. Miller, J.-A. "Para introducir el efecto de formación". In: Almanza, M.; Esqué, X.; Miller, J.-A. Cómo se formam los analistas? Buenos Aires: Grama Ed., 2012. P. 15
2. Miller, J.-A. "Para introducir el efecto de formación", op.cit. p. 13
3. Santiago, A. L. "O CIEN na minha formação analítica". In: Otoni Briset, F.; Santiago, A.L.; Miller, J. (orgs.) Crianças falam! E tem o que dizer. Experiências do CIEN no Brasil. Belo Horizonte: Scriptum,  2013, p. 35.
4. Lacan, J. "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola". In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 261.

5. LACAN. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956, p.461-495.
6. MILLER. La vie de Lacan – Cours n.10, 12/05/2010, (inédito).


Twitter Facebook Favorites More